"(Uma luz focando o centro do palco, com um banquinho mais atrás. Entra um homem com calças e sapatos pretos, camisa branca, cabelos com gel totalmente penteados para trás, uma gravata, um óculos. Pára no meio da luz, e fica alguns segundos olhando fixamente para o longe. Abaixa a cabeça, e então começa a bater palmas lentamente).
.
Muito bem! Bravo! Bravo! Já que ninguém bateu palmas, eu mesmo bato. Os senhores são incapazes de saudar a obra que os senhores mesmo criaram. Mas eu já não ligo. Aplaudo. Aplaudo a insignificância desta peça desprovida de atos a qual os senhores se acostumaram a chamar de vida. E continuarei a aplaudir até que estas mãos fiquem vermelhas, ardentes. Até que sangrem. Que cara é esta, senhoras e senhores? O que está havendo com o meu respeitável público? (Estabelece-se um curto silêncio, em que o ator encara a plateia. As luzes se acendem. Começa então a se desfazer da imagem formal trazida no início).
Ora... não foi para isso que os senhores vieram aqui? Para ver um show? Pois aqui está o meu show! Eis aqui o meu espetáculo de danças lentas, desenvolvidas pelo coreógrafo morto na primeira esquina, por uma metralhadora de choros secos despejados no rio vazio dos nossos dias.
Sou um ator das massas. Das massas macilentas, das massas cinzentas, das massas solitárias. Meu público alvo principal é a massa presente dentro deste coração que a cada dia bate mais devagar. (Começa a bater no peito com força). Este, este aqui que os senhores veem neste peito aberto, rasgado pelo facão pontiagudo que estava em poder do Amor, quando tentei enforcá-lo com estas mãos sujas que os senhores vêem (mostra a palma das mãos). Mas isso nunca dá certo. A briga sempre é desleal. Sei que os senhores têm apenas boca, mas se tivessem ouvidos poderiam considerar o meu conselho de nunca enfrentar esse tal de Amor. Não se pode enfrentar e dominar o desconhecido, aquilo que é intangível aos homens. Os senhores, homens, não tem noção da sua pequenez. E eu, para o meu azar, e para o azar dos senhores, também sou um homem. Mas já que estão aqui, pelo menos sejam educados e escutem o que não vou lhes dizer. É isso mesmo. Pelo menos isso os senhores não ouviram errado. O essencial foge aos sentidos.
Por isso hoje os senhores veem este coração que persiste em bater. Bate descontente, bate contrariado, bate como o homem pintado que tenta alegrar o rei, mas que dança fora do compasso (dança ridiculamente um passo de valsa. Mas logo pára. Semblante fica sombrio). A diferença é que meu coração quer dançar fora do compasso, porque o compasso que os senhores marcam nos enoja. A mim e a este coração descompassado.
Uma das lições que aprendi nesta vida de ator das massas unipessoais é que não devemos maltratar o nosso público. Isso esvazia teatros. E por muito tempo falei para teatros vazios. Até o dia que uma pessoa única ouviu o que eu tinha para falar, e ao término de minha exposição, arremessou-me um tomate que acertou bem no meio de minha camisa já tão gasta. E então chamaram-me de profeta. (Ri). Percebem a pobreza do não compreendimento? Confesso aos senhores, contudo, que tenho chegado à conclusão de que a melhor visão é a do cego, e que a mais aguçada audição é proveniente do surdo. A chave para a compreensão pode ser o não compreender.
Todavia, senhoras e senhores, também aprendi a nunca subestimar aqueles para quem falo. Precisei de muito tempo para valorizar aqueles que vivem aqui dentro (toca o tronco do próprio corpo). E foi então que aprendi a não atuar. Os senhores esperam por uma peça teatral, mas a única coisa que tenho para oferecer é o espetáculo da não atuação. A explicitação cruel da nudez exposta ao inverno deste que desistiu de atuar.
E é assim, não atuando – (senta num banquinho) – que atingirei os vossos corações. Ou pelo menos quero que os senhores acreditem que não estarei atuando. As personagens que melhor sei interpretar são aquelas que criei para mim mesmo, no meu cotidiano tedioso e desinteressante. Hoje estou escondendo o mau, o perverso, o feliz, o infantil... visto hoje a máscara do sábio desprovido de temor, pudor e senso de ridículo.
Interpretarei a mim mesmo, pois. E então os senhores me aplaudirão, e eu silenciarei. O espetáculo de hoje é dedicado aos senhores. E diante de palavras tão pouco educadas, tenho a sinceridade maldita de desdizer os ditos populares.
Sou aquele que fala pelo silêncio. Sou o doutrinador que prega a revolução de suas almas. A queda das ditaduras internas. Sou o profeta das massas. O profeta das massas solitárias.
Alguém me ouve?
(Apagam-se as luzes)."
Ora... não foi para isso que os senhores vieram aqui? Para ver um show? Pois aqui está o meu show! Eis aqui o meu espetáculo de danças lentas, desenvolvidas pelo coreógrafo morto na primeira esquina, por uma metralhadora de choros secos despejados no rio vazio dos nossos dias.
Sou um ator das massas. Das massas macilentas, das massas cinzentas, das massas solitárias. Meu público alvo principal é a massa presente dentro deste coração que a cada dia bate mais devagar. (Começa a bater no peito com força). Este, este aqui que os senhores veem neste peito aberto, rasgado pelo facão pontiagudo que estava em poder do Amor, quando tentei enforcá-lo com estas mãos sujas que os senhores vêem (mostra a palma das mãos). Mas isso nunca dá certo. A briga sempre é desleal. Sei que os senhores têm apenas boca, mas se tivessem ouvidos poderiam considerar o meu conselho de nunca enfrentar esse tal de Amor. Não se pode enfrentar e dominar o desconhecido, aquilo que é intangível aos homens. Os senhores, homens, não tem noção da sua pequenez. E eu, para o meu azar, e para o azar dos senhores, também sou um homem. Mas já que estão aqui, pelo menos sejam educados e escutem o que não vou lhes dizer. É isso mesmo. Pelo menos isso os senhores não ouviram errado. O essencial foge aos sentidos.
Por isso hoje os senhores veem este coração que persiste em bater. Bate descontente, bate contrariado, bate como o homem pintado que tenta alegrar o rei, mas que dança fora do compasso (dança ridiculamente um passo de valsa. Mas logo pára. Semblante fica sombrio). A diferença é que meu coração quer dançar fora do compasso, porque o compasso que os senhores marcam nos enoja. A mim e a este coração descompassado.
Uma das lições que aprendi nesta vida de ator das massas unipessoais é que não devemos maltratar o nosso público. Isso esvazia teatros. E por muito tempo falei para teatros vazios. Até o dia que uma pessoa única ouviu o que eu tinha para falar, e ao término de minha exposição, arremessou-me um tomate que acertou bem no meio de minha camisa já tão gasta. E então chamaram-me de profeta. (Ri). Percebem a pobreza do não compreendimento? Confesso aos senhores, contudo, que tenho chegado à conclusão de que a melhor visão é a do cego, e que a mais aguçada audição é proveniente do surdo. A chave para a compreensão pode ser o não compreender.
Todavia, senhoras e senhores, também aprendi a nunca subestimar aqueles para quem falo. Precisei de muito tempo para valorizar aqueles que vivem aqui dentro (toca o tronco do próprio corpo). E foi então que aprendi a não atuar. Os senhores esperam por uma peça teatral, mas a única coisa que tenho para oferecer é o espetáculo da não atuação. A explicitação cruel da nudez exposta ao inverno deste que desistiu de atuar.
E é assim, não atuando – (senta num banquinho) – que atingirei os vossos corações. Ou pelo menos quero que os senhores acreditem que não estarei atuando. As personagens que melhor sei interpretar são aquelas que criei para mim mesmo, no meu cotidiano tedioso e desinteressante. Hoje estou escondendo o mau, o perverso, o feliz, o infantil... visto hoje a máscara do sábio desprovido de temor, pudor e senso de ridículo.
Interpretarei a mim mesmo, pois. E então os senhores me aplaudirão, e eu silenciarei. O espetáculo de hoje é dedicado aos senhores. E diante de palavras tão pouco educadas, tenho a sinceridade maldita de desdizer os ditos populares.
Sou aquele que fala pelo silêncio. Sou o doutrinador que prega a revolução de suas almas. A queda das ditaduras internas. Sou o profeta das massas. O profeta das massas solitárias.
Alguém me ouve?
(Apagam-se as luzes)."
.Por Gustavo Marin.
Tendo lido tudo, e relido, sinto-me compelida a deixar aqui um comentário.
ResponderExcluirDevo dizer que, ao entrar no blog, desinteressadamente, não esperava tudo isso.
Ler o texto foi uma surpresa muito boa, boníssima, e espero verdadeiramente poder ler mais por aqui, no blog.
Aliás, adorei essa parte: "...escutem o que não vou lhes dizer. É isso mesmo. Pelo menos isso os senhores não ouviram errado. O essencial foge aos sentidos."
Escute tudo aquilo que não vou dizer aqui, e entenda toda minha admiração pelo texto tão bem criado. Abraços. E aplausos.
Érika.