quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Medos, amores, maçãs

Sentou-se no banco da praça, que àquela hora estava cheia. Muitos passavam, mas ninguém parava. Todos percebiam, mas igualmente todos fingiam não perceber que a vida de Reinaldo estava se transformando ali, naquele momento, em plena luz do dia. Certamente muitos pensaram em sentar-se a seu lado, colocar a mão sobre seu ombro e dizer: “Vamos, meu jovem! Seja lá o que for isso, foi só uma decepção. Outra pessoa pode receber essas flores”.

Mas ninguém se sentou ao seu lado desde o momento em que ela se levantou daquele assento. Depois de muito tempo em sua vida, ele se sentiu sozinho. Era uma pessoa cercada de pessoas, carinho, poemas. Gabrielle lhe parecia alguém como ele. Viu em sua mente a cena de alguns meses atrás, quando a moça abriu o bombom vermelho que ele havia dado. Lembrou-se de querer dizer a ela que aquele chocolate não era necessariamente recheado com licor de cerejas. Era um recheio especial. Não sabia se ela entenderia, então se calou.

E calou-se por muito tempo. Calou-se quando a sentiu chorar em seus braços. Calou-se quando a viu gritar, instigada de raiva contra ele. Calou-se quando ela disse que o amava. Calou-se quando ela disse que ele era seu melhor amigo. Calou-se quando ela contou a ele sobre suas paixões. Calou-se diante dos vícios. Calou-se diante dos risos. Calou-se quando brincaram.

Viveu calado. No fundo, era um rapaz solitário. Mas isso não o incomodava. A solidão acompanhada era algo que Reinaldo amava. Com o olhar marejado, viu dentro de si ainda a memória viva, daquele mesmo dia, quando se animou a propor a Gabrielle que dividissem suas solidões. Comprou rosas, o mesmo bombom de sempre, penteou os cabelos para o lado, colocou a melhor roupa que tinha naquele armário repleto de camisas pretas, listradas e xadrez.

Quis que aquele dia fosse uma grande surpresa. De uma forma ou de outra, suas expectativas não foram frustradas. Surpreendeu-se. Nunca havia visto uma negativa como aquela. Uma explicação completamente confusa, pronunciada por uma boca que esboçava um sorriso. Ele a conhecia. Sabia que aquele sorriso não expressava felicidade. Ela sempre fazia isso quando não sabia o que fazer. Era o mesmo sorriso que ela dera quando ele a convidou para entrar na roda-gigante. Foi o mesmo sorriso que ela deu na fila e quando os dois estavam lá em cima. Ela chorava pela sua fobia, mas o sorriso embaraçado não deixou seu rosto nem quando ela pegou a mão de Reinaldo e apertou com muita força.

Não sabia quando sentiria aquela mão de novo, ou aquele abraço depois de alguma grosseria involuntária qualquer. Naquele momento entendera Adão e Eva, e se solidarizou com o casal. Todos os condenam por terem mordido justamente o fruto proibido, diante de um paraíso e um pomar natural formosamente diversificado. Mas... E se eles tivessem simplesmente se enganado, se confundido? Ou então, e se tanto Eva quanto Adão tivessem se apaixonado por aquela árvore? Que haveriam de fazer? E se os outros frutos não tivessem mais sabor? Se sua teoria porventura se comprovasse um dia, seria uma injustiça histórica o fato de Adão e Eva terem que enfrentar a saída do paraíso unicamente por darem vazão às suas paixões, que podiam ser as mais belas.

Foi então que Reinaldo descobriu-se casado com a estabilidade, mas amante do movimento, mesmo que desgraçado. Sentiu isso quando viu sua maçã sair correndo da praça, de capuz, para que ninguém visse que chorava. Ela ainda olhou para ele, como se implorasse para que ele entendesse que sua negação era motivada unicamente por um amor tão grande que nem ela mesma compreendia. Não quis amá-lo por amá-lo demais. Talvez fosse aquilo que o último olhar de Gabrielle quis lhe dizer. Talvez ainda fosse um pedido desesperado para que ele largasse as flores, corresse até ela e gritasse para que voltasse.

Mas ele simplesmente calou-se.

.Por Gustavo Marin.

domingo, 19 de julho de 2009

"Fique mais um pouco..."

O relógio marcava duas e meia da tarde. O céu estava relativamente limpo, ventava muito pouco. O ambiente era de uma calmaria altamente contrastante com o coração da jovem que andava por aqueles corredores solitários, com um par de rosas apertadas firmemente com a mão direita, enquanto a esquerda enxugava o início de lágrimas contidas, mastigadas, não digeridas. Estava sozinha. Sempre estava sozinha naquele lugar. Contudo, ela sempre tomava cuidado para silenciar a si mesma o máximo possível. Um pequeno misto de respeito e medo.

Quando os olhos deixavam de vislumbrar qualquer sinal de claridade, ela gostava de se retirar do mundo real dos adultos. Às vezes gostava de exilar-se. Em seu pesadelo de Édipo, vazava os próprios olhos, e então se auto-expulsava de onde quer que estivesse, como para salvar-se. A diferença é que então ela reinava. Sobre ninguém, nem sobre ela. Talvez nem reinasse tanto assim, pensou. Mas pelo menos não havia ninguém que a torturasse pelos seus escritos ou seus desesperos, suas consequências e suas causas, seus inícios e seus fins.

Parou de divagar, e concentrou-se na tarefa de encontrar o pedaço de concreto que emprestava daquela velha conhecida desde que a desgraça acontecera. Desde o ocorrido, pelo menos uma vez por semana vinha visitar sua companheira. Ela nunca reclamava de a garota usar seus aposentos. Sorriu ao encontrar o lugar procurado, misturando o brilho dos dentes muito brancos com o reflexo da luz do sol nas lágrimas finas, que engrossavam conforme via a imagem de sua melhor amiga, sorrindo para ela. Estava sempre sorrindo. Era a única que continuava sempre sorrindo.

“Trouxe isso para você hoje. Não encontrei as brancas, suas favoritas, mas sei que você considera mais a intenção. Espero que goste mesmo assim. Hum... Veja só: trouxe os cookies de chocolate que você adora. Trouxe um pacote apenas, porque o resto do dinheiro eu usei para comprar as flores. É... Quê? Pare. Pare de me olhar com essa cara e esse sorriso que agora parece irônico! Você sabe que eu... Já disse para parar!” Riu baixinho. “Está bem, está bem. Eu não consigo mentir para você, mesmo. Comprei um pacote só para nós duas, porque as flores eu roubei do seu jardim de casa. Estou cuidando dele para você. Sei que você não costuma receber presentes que pertencem a você mesma, mas... Você considera mais a intenção, certo? Considerarei este silêncio como um sim”.

Cantarolou baixinho então uma canção que ouvia quando era apenas uma menina. Tirou da mochila uma foto que mostrava um berço, uma criança gorda exibindo um sorriso farto, e uma mulher que segurava um violão, aparentemente cantando uma dessas músicas de ninar. Talvez aquela que a jovem estava cantando agora. A foto a fez pensar em como as coisas são efêmeras. Desejou por um instante que todo o resto do mundo fosse como uma fotografia. Fotografias podem parecer sem graça, ridiculamente estáticas. Mas isso pode ser um engano. Poucos são os que podem escutar o que as fotografias têm a dizer, e notar todo o movimento contido nelas. Fotografias são estáveis. Passasse o tempo que fosse, o berço nunca sairia dali, a criança dentro dele jamais deixaria de sorrir, as cordas do violão não estourariam, e a mulher sempre cantaria sem nunca ficar rouca. As fotos quase sempre eram felizes, além de tudo. Ter o mundo como uma fotografia seria como eternizar a alegria. No fundo, a garota sempre desejara que seu mundo fosse um álbum de fotografias tiradas por ela mesma, montado a seu gosto. Sabia que aquele pensamento era infantil, irreal, beirando o fútil. Mas ainda assim a tranquilizava. Uma falsa estabilidade anestésica. Uma droga que ela sabia fazer mal, mas tomava para continuar seguindo, ou dormir.

A voz que começara a canção de forma doce terminou pesada. Ela se levantou, por fim, olhando de novo para a foto. Escondeu atrás do pedaço de concreto uma cartinha que escrevera antes de adentrar o portão enferrujado da nova eterna casa de sua amiga. “Você continua rindo aí. Convenceu-me a voltar amanhã. Prometo tentar. Vou deixar essas últimas bolachinhas para você, pode ser?”. Abaixou-se e colocou o pacote entre as duas rosas. Desistiu de conter o pranto, e sentiu-se abraçada pela sua amiga mais ausentemente presente.

Ao longe, o velho que tomava conta dos lares dos adormecidos via com curiosidade uma garota exteriorizando um choro nostálgico. Era um homem cheio de histórias para contar, até pelo lugar onde trabalhava. Mas era a primeira vez que via uma jovem como aquela abraçando a si própria, aparentemente confortável com a companhia da dama de lábios frios. Quando deu por si, o homem também chorava. Emocionou-se.

“Sinto tanto a sua falta, mamãe...”, disseram os dois desconhecidos, simultaneamente, a muitos metros de distância um do outro.
.Por Gustavo Marin.

sábado, 11 de julho de 2009

Palavras de um profeta sem público

"(Uma luz focando o centro do palco, com um banquinho mais atrás. Entra um homem com calças e sapatos pretos, camisa branca, cabelos com gel totalmente penteados para trás, uma gravata, um óculos. Pára no meio da luz, e fica alguns segundos olhando fixamente para o longe. Abaixa a cabeça, e então começa a bater palmas lentamente).
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Muito bem! Bravo! Bravo! Já que ninguém bateu palmas, eu mesmo bato. Os senhores são incapazes de saudar a obra que os senhores mesmo criaram. Mas eu já não ligo. Aplaudo. Aplaudo a insignificância desta peça desprovida de atos a qual os senhores se acostumaram a chamar de vida. E continuarei a aplaudir até que estas mãos fiquem vermelhas, ardentes. Até que sangrem. Que cara é esta, senhoras e senhores? O que está havendo com o meu respeitável público? (Estabelece-se um curto silêncio, em que o ator encara a plateia. As luzes se acendem. Começa então a se desfazer da imagem formal trazida no início).

Ora... não foi para isso que os senhores vieram aqui? Para ver um show? Pois aqui está o meu show! Eis aqui o meu espetáculo de danças lentas, desenvolvidas pelo coreógrafo morto na primeira esquina, por uma metralhadora de choros secos despejados no rio vazio dos nossos dias.

Sou um ator das massas. Das massas macilentas, das massas cinzentas, das massas solitárias. Meu público alvo principal é a massa presente dentro deste coração que a cada dia bate mais devagar. (Começa a bater no peito com força). Este, este aqui que os senhores veem neste peito aberto, rasgado pelo facão pontiagudo que estava em poder do Amor, quando tentei enforcá-lo com estas mãos sujas que os senhores vêem (mostra a palma das mãos). Mas isso nunca dá certo. A briga sempre é desleal. Sei que os senhores têm apenas boca, mas se tivessem ouvidos poderiam considerar o meu conselho de nunca enfrentar esse tal de Amor. Não se pode enfrentar e dominar o desconhecido, aquilo que é intangível aos homens. Os senhores, homens, não tem noção da sua pequenez. E eu, para o meu azar, e para o azar dos senhores, também sou um homem. Mas já que estão aqui, pelo menos sejam educados e escutem o que não vou lhes dizer. É isso mesmo. Pelo menos isso os senhores não ouviram errado. O essencial foge aos sentidos.

Por isso hoje os senhores veem este coração que persiste em bater. Bate descontente, bate contrariado, bate como o homem pintado que tenta alegrar o rei, mas que dança fora do compasso (dança ridiculamente um passo de valsa. Mas logo pára. Semblante fica sombrio). A diferença é que meu coração quer dançar fora do compasso, porque o compasso que os senhores marcam nos enoja. A mim e a este coração descompassado.

Uma das lições que aprendi nesta vida de ator das massas unipessoais é que não devemos maltratar o nosso público. Isso esvazia teatros. E por muito tempo falei para teatros vazios. Até o dia que uma pessoa única ouviu o que eu tinha para falar, e ao término de minha exposição, arremessou-me um tomate que acertou bem no meio de minha camisa já tão gasta. E então chamaram-me de profeta. (Ri). Percebem a pobreza do não compreendimento? Confesso aos senhores, contudo, que tenho chegado à conclusão de que a melhor visão é a do cego, e que a mais aguçada audição é proveniente do surdo. A chave para a compreensão pode ser o não compreender.

Todavia, senhoras e senhores, também aprendi a nunca subestimar aqueles para quem falo. Precisei de muito tempo para valorizar aqueles que vivem aqui dentro (toca o tronco do próprio corpo). E foi então que aprendi a não atuar. Os senhores esperam por uma peça teatral, mas a única coisa que tenho para oferecer é o espetáculo da não atuação. A explicitação cruel da nudez exposta ao inverno deste que desistiu de atuar.

E é assim, não atuando – (senta num banquinho) – que atingirei os vossos corações. Ou pelo menos quero que os senhores acreditem que não estarei atuando. As personagens que melhor sei interpretar são aquelas que criei para mim mesmo, no meu cotidiano tedioso e desinteressante. Hoje estou escondendo o mau, o perverso, o feliz, o infantil... visto hoje a máscara do sábio desprovido de temor, pudor e senso de ridículo.

Interpretarei a mim mesmo, pois. E então os senhores me aplaudirão, e eu silenciarei. O espetáculo de hoje é dedicado aos senhores. E diante de palavras tão pouco educadas, tenho a sinceridade maldita de desdizer os ditos populares.

Sou aquele que fala pelo silêncio. Sou o doutrinador que prega a revolução de suas almas. A queda das ditaduras internas. Sou o profeta das massas. O profeta das massas solitárias.

Alguém me ouve?

(Apagam-se as luzes)."
.Por Gustavo Marin.